
Cruzeiro Australis percorre as geleiras e ilhas da Terra do Fogo, no extremo sul da América Latina – Foto: Débora Costa e Silva
É curioso o quanto o trajeto de uma viagem influencia as impressões sobre o lugar para onde vamos. Nas duas vezes em que fui para a Patagônia chilena (a primeira em 2009, e a última agora, em agosto de 2015, ambas a trabalho) tive percalços e muita tensão durante a ida. Acho que isso fez com que esse destino que já é especial, se tornasse tão marcante para mim.
Chegar de uma viagem cansativa na praia é uma coisa: você é acolhido pelo mormaço, pelo céu azul, pelo sol, pela maresia e por uma calmaria geral. Já quando se vai para um destino de inverno as coisas começam a complicar: você usa mais roupas, é difícil se locomover, o céu pode estar cinzento, às vezes tem até chuva e o vento dificulta seus passos. A Patagônia é assim, dura na queda, não é de sorriso fácil. Mas ela conquista aos poucos e definitivamente.

Pensa n num lugar frio. E lindo. É aqui! Na foto, um dos glaciares vistos no cruzeiro pela Terra do Fogo. Foto: Débora Costa e Silva
Meu primeiro encontro com este lugar foi há seis anos, quando fiz o cruzeiro Australis, que navega pelas ilhotas e geleiras da Terra do Fogo, de Punta Arenas (Chile) para Ushuaia (Argentina). Foi a primeira viagem a trabalho, sozinha e também a primeira (e única) vez que perdi um voo e quase pus tudo a perder. Culpa de um taxista mercenário que mudou de trajeto até o aeroporto qua-tro ve-zes e me fez chegar 5 minutos depois do check-in ter encerrado.
Chorei muito no balcão da TAM até ser expulsa (“Você pode sair daqui? Está atrapalhando”). Com a ajuda da minha mãe, ninja das burocracias de viagem, consegui embarcar em um voo da LAN meia hora mais tarde. Depois de muito correr, tremer e chorar, consegui chegar a tempo de pegar outro voo para Punta Arenas e finalmente embarcar no cruzeiro.

Vista de montanhas de picos nevados a partir da Baía Wulaia, no extremo sul do Chile. Foto: Débora Costa e Silva
O vento gelado e cortante é onipresente e deu o tom da viagem. Foi mágico estar cercada de glaciares, ver de perto condores, elefantes marinhos e pinguins, enfim, estar imersa à natureza patagônica. A sensação de ter chegado ao fim do mundo é, ao mesmo tempo, encantadora e assustadora. Não há dúvidas de quem manda ali é a natureza. Tudo é intenso. Costumam dizer por lá que é possível ter em um só dia as quatro estações do ano: abre o céu, vem o sol, venta, chove, refresca, gela, ameniza, passam nuvens, volta o sol e o ciclo recomeça. Terra de extremos.
Corta a cena e pula para agosto de 2015. Novamente a trabalho, tinha uma passagem em que constava “Punta Arenas” como o destino final. O avião saía de Santiago, parava em Puerto Montt e seguia até lá. Durante o voo fiquei relembrando todas essas sensações da primeira vez, em como era especial estar de volta, o quanto estava com saudades de sentir aquele frio com gostinho de Patagônia, em como eu precisava dessa viagem para descansar da vida atribulada e aproveitar para relaxar a mente, ter insights legais, dar aquela pirada gostosa…

Não importa se é a primeira ou a quinquagésima vez: quando vemos a neve cair, o encanto permanece o mesmo. Foto: Débora Costa e Silva
Eis que chegamos em Puerto Montt e o cenário mudou. Ao invés do gosto de pisco souer para comemorar, o sabor amargo de um café que me servi na sala de embarque para aliviar a tensão de ter que esperar consertarem um vazamento no avião. Fiquei com o grupo de jornalistas pensando nas várias possibilidades do que poderia acontecer: teríamos que esperar outro voo? Mas tem outro voo? Vamos dormir aqui?
A resposta veio logo: o vazamento foi resolvido. Ufa, meia horinha de puro drama e nada mais, tudo certo. Voltamos para os nossos assentos, ainda bastante temerosos em relação a essa rápida solução, mas ok. Peguei o caderninho, coloquei o cinto e voltamos ao céu.

O céu da Patagônia é quase sempre sinistro assim, cheio de nuvens e cores que dão um aspecto sombrio e mágico ao lugar. Foto: Débora Costa e Silva
Mas tão logo começou a voar, o avião passou a chacoalhar: de um lado para o outro, para frente e para trás. Eu normalmente sou tranquila em relação à turbulências, mas essas me assustaram. Era culpa do vento, aquele que estava descrevendo alguns parágrafos acima. Tão gostoso e fresco na memória, mas de repente tão brusco e apavorante. Se lá do alto dava para sentir sua força, imagine em terra firme? Para ajudar, olhei para fora da janelinha e o céu estava num tom de cinza sinistro.
Tentei voltar a escrever, mas essa altura já estava com o estômago revirado e beeeem distante daquele romantismo todo. Como alguém pode gostar dessa ventania, capaz de balançar tão forte um avião? Como eu pude pensar que estava com saudades desse frio, desse lugar bizarro e sombrio?
Finalmente pousamos. O frio veio me dar boas vindas, gelando meu nariz e qualquer pedacinho descoberto do meu corpo. Por mais que eu me esforçasse em ver beleza na chegada, o enjoo do voo persistiu e me acompanhou durante toda a viagem de carro até o hotel. Foram longas quatro horas, em que eu não sabia se comia, bebia água, mascava chiclete ou deixava meu estômago embrulhado quieto na dele.
Chegamos no hotel à noite e o alívio foi substituindo o mal estar. Não era para menos, o Tierra Patagônia é sensacional: todo feito de madeira, te dá uma sensação de aconchego logo de cara. Fui dormir apavorada com os barulhos do vento, da madeira rangendo – pra ajudar a luz do banheiro piscava, quase filme de terror – e zonza ainda da viagem, sem saber direito onde estava, como e por que. Descobri só no dia seguinte, quando abri a cortina e dei de cara com as Torres del Paine na janela.

Na praça de Punta Arenas, tem essa estátua de um índio. Dizem que para voltar ao destino, é preciso beijar seu pé. E não é que voltei? 😛
Pronto, mais um sonho realizado. Mais uma vez aquele céu, o vento, os galhos secos, os arbustos amarelos, as montanhas de picos nevados, os condores – agora acompanhados também de ovelhas e guanacos – me curando da ressaca da viagem. De novo eu ali, como uma menininha com medo do escuro, com frio na barriga, prestes a explorar um novo lugar. Mais uma vez uma fase nova da vida marcada por este destino que consideram o fim do mundo, mas que pra mim se tornou um lugar de renovação e recomeços.
Vai lá!
Matéria que fiz para o UOL Viagem sobre o cruzeiro Australis.
Viajei contigo nesse texto, Dé! Sonho em fazer esse cruzeiro da Autralis e conhecer a porção chilena da Patagônia. Incrível como o tempo e as viagens mudam a gente, né? Eu era bem chegada numa cidade, total urbana mesmo. Mas hoje, se pudesse, só visitaria destinos de natureza, desses que marcam, que arracam o fôlego e o chão da gente. Chacoalhar é bom, melhor ainda se for em terra firme 😉
É um sonho mesmo esse cruzeiro, Rapha! Tem que fazer! 🙂 E total, quanto mais viajamos, mais aprendemos sobre nós mesmos né? Os conceitos mudam! E pra mim também, ando numa fase de querer só ir pra destinos de natureza! Beijos 🙂
Que delícia de texto! Tb viajei com suas palavras e chacoalhei com a descrição e tudo… mas poético e profundo esse lance de recomeços. Adorei! :*
Que bom que gostou, De! Ia mesmo te pedir uma leitura-amiga haha legal que sacou o lance do recomeço! Bjs
Que aventura, Débora! E que delicia de texto. Fluido, daqueles que a gente lê numa tacada só! Beijos!
Ai, fiquei feliz que gostou, Gustavo! O lugar ajuda né? E suas impressões sobre a Patagônia me marcaram também – prestei bem mais atenção nos animais dessa vez, por exemplo! 🙂 Bjs
Dé, adorei o texto,apesar dos imprevistos, senti vontade de estar participando dessa viagem com você. Quem sabe ainda dê tempo.Parabéns,um beijão! Te amo.
Ahhhh vó! Quem sabe um dia vamos? É muito bonito lá, mas tenha certeza que quando viajo levo um pouquinho das pessoas queridas, como você, também! 🙂
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