“Se van los montañeros, se van se van”. Essa é a musiquinha que um guia chileno me ensinou a cantar para me distrair das curvas incessantes da estrada que leva ao topo do Valle Nevado, perto de Santiago. Recorro a ela, pois vou contar a história de um montañero que também andou por aquelas bandas do Chile. A vida toda.
Mendoza-Santiago, Santiago-Mendoza. Argentina-Chile, Chile-Argentina. Toda semana era esse vai e vem durante a juventude de Sergio Aguillar Gimenez. Hoje com 92 anos, ele continua com duas casas, uma em cada cidade, mas considera a da Argentina sua fiel morada.
Sua vida era viajar, atravessar a cordilheira e conectar essas duas cidades, fosse de carro, caminhão, micro-ônibus ou até veículos que transportavam 40 passageiros. No início, levava gado de um país ao outro. Depois vieram os trabalhadores que precisavam cruzar a fronteira. E assim seguiu pra lá e pra cá.
A vida na estrada lhe permitiu expandir os horizontes. Sempre foi muito criativo: certa vez pensou que ventiladores fariam sucesso em Mendoza, onde o tempo quente e seco castiga no verão. Então foi lá na capital chilena comprar uma leva para revender e fazer um dinheirinho extra.
Cada hora inventava uma coisa. Além de motorista e empreendedor nato, também ganhava a vida como marceneiro e tinha hobbys interessantes: produzia vinho e criava flores híbridas, através do cruzamento de espécies.
Quando conseguia férias ou uma folga entre um trabalho e outro, escapava para a estrada. Veio muito ao Brasil, inclusive, onde morou durante parte de sua infância e tinha parentes e amigos no interior de São Paulo. Foi em uma dessas incursões que conheceu sua prima Nicolina, minha avó paterna.
A prima
A primeira vez que se encontraram foi em 1955. “Ele apareceu de surpresa na casa da minha tia, na Vila Nova Conceição, em São Paulo, procurando por familiares”, lembra minha vó. Anos depois, na década de 80, o Sérgio bateu na porta de sua casa, já no bairro da Saúde, a bordo de um furgão acompanhado de sua esposa Nena, dez anos mais nova.
“Não tinha lugar na casa para eles ficarem, então entrei no carro e os guiei até Mogi das Cruzes, para a casa dos meus pais. O furgão parecia uma Kombi adaptada, não tinha nem onde eu sentar, fui entre os dois bancos da frente”, conta aos risos.
Quando o Sergio fez essa visita, eu já tinha nascido, mas ainda era bebê. Acho que ele chegou a me ver, mas eu só o conheci de fato em 2013, quando fui para Mendoza a trabalho e encontrei uma brecha para ir atrás de seu paradeiro. Minha vó não tinha notícias dele há anos e temia até que já tivesse morrido, por isso pediu que eu o procurasse.
A busca
Ela me deu uma foto do Sergio. No verso escreveu dois endereços que tinha em sua agenda e pediu para tentar achá-lo. Consegui uma tarde livre no último dia da viagem e o fotógrafo Tony Miyasaka, que estava no grupo dos jornalistas, topou me acompanhar na busca.
Fomos de táxi até Godoy Cruz, distrito próximo de Mendoza, e paramos na primeira rua que tinha anotado. Só que o número não existia, então resolvi tocar a campainha no mais próximo.
Ninguém atendeu. A rua, aliás, estava deserta e silenciosa. Pensei até: será que tem alguém vivo por aqui? Na segunda casa, apareceu um cachorro latindo alto e bravo (já fiquei tensa) e a pessoa que nos atendeu não conhecia nenhum Sergio. Na terceira tentativa, demorou para aparecer alguém, mas finalmente nos deram uma informação: ele mora ali, na casa de portão branco.
Já animada, toquei a campainha, com a foto dele em mãos. Depois de alguns minutos, um senhor apareceu na janelinha do portão: era o próprio! Fiquei emocionada! Falei que era neta da Nicolina, do Brasil, e ele abriu o portão para a gente.
A visita
Passamos a tarde inteira lá. Tentei várias vezes ligar para a minha vó no Brasil e não consegui, mas fizemos fotos, o Tony gravou alguns vídeos da nossa conversa, a Nena nos serviu um café da tarde e fomos embora quase de noite.
Durante esse tempo, ele me contou um pouco de cada viagem que fez. A conversa foi meio atrapalhada – um pouco pelo idioma, um pouco por sua surdez. Mas sua memória ainda estava tinindo e ele vibrava a cada lembrança.
Ele contou que além de ter rodado a América Latina toda e ter visitado muitos lugares no Brasil, foi a Espanha três vezes – uma delas ficou por três meses e também saiu em busca de seus parentes. “O Sergio sempre foi muito família e viajava muitas vezes em função disso, de ir atrás de suas origens”, conta minha avó. Mas foi quando ele me mostrou uma foto dele esquiando que me encantei de vez.
Dois anos depois desse encontro, eu já me esqueci de muitos detalhes da visita, então liguei pro Tony, que me recordou sobre a história do esqui. Pelo o que ele lembra, havia época em que não havia escola de esqui na região de Mendoza, nem equipamentos, e um dos sonhos do Sergio era esquiar. Ele fez que fez que convenceu uns caras do Exército a emprestarem seus esquis para poder brincar um pouco – e guardou essa foto aqui.
A queda
Uma hora paramos a conversa para conhecer seu jardim. Suas flores híbridas florescem por ali, logo ao lado de sua oficina de produção de vinho. Ele inclusive me deu uma garrafa para que eu levasse para a minha vó.
Voltando para a casa, resolvemos fazer uma foto com eles. Só que a Nena não queria aparecer de jeito nenhum. Depois de muito insistir, ela topou e posamos. E aí aconteceu uma das situações mais tragicômicas que já vivi. Comecei a sentir uma resistência, parecia que ela estava tentando se desvencilhar do meu abraço. Me puxava e eu puxava de volta, e depois de umas três vezes fazendo isso, eu percebi que não era ela, mas sim o Sergio que estava desequilibrado e caindo!
Tentei segurá-lo ao máximo, mas ele é muito pesado e a queda foi inevitável. Como foi caindo em câmera lenta, o impacto não foi tão grande, mas pela sua idade esse pequeno tombo já poderia ter causado um estrago. Acostumada com quedas ridículas de amigos da minha idade, confesso: a vontade na hora era rir, pois foi uma trapalhada e, quem diria, justo no momento da foto.
Mas logo percebi a gravidade da situação e fiquei super preocupada. Diz ele que não se machucou, mas vai saber, às vezes mesmo sem sentir a pessoa pode ter fraturado alguma parte do corpo e só descobrir depois. Bom, ele sobreviveu – e estava ótimo quando minha vó finalmente o reencontrou.
O reencontro
Quando voltei de viagem, mostrei a minha vó todas as fotos e vídeos. Ela se emocionou muito e me agradeceu. No fim, eu é que tenho que agradecer por ter me dado a chance de viver essa história e ter conhecido uma pessoa tão interessante.
O mais legal de tudo é que, um ano depois, minha vó embarcou para a Argentina e saiu do país pela primeira vez. Sim, ela foi para Mendoza reencontrar o Sergio e a Nena junto com seu outro primo Roni e sua esposa Jandira. Disse que foi emocionante e ficou feliz de ver que ele está melhor de saúde e continua falante e lúcido.
A história do Sergio é inspiradora. Em tempos em que o dinheiro era suado e viajar era tão mais difícil do que hoje em dia, ele fazia de tudo para cair na estrada e seguir em busca de suas origens, de sua família e visitar os amigos. E graças ao pedido da minha vó, pude viver um pouco disso também. Com uma foto na mão, saí em busca de um primo distante e encontrei ainda mais inspiração para continuar viajando.
Emocionante!!! Boas lembranças de ótimos momentos.
Só você para nos proporcionar tantas surpresas e alegrias.
Te amo muito. Seja muito feliz!Bjs
Obrigada . Dé e Tony,pela matéria e pelas fotos.Li pela terceira vez e me emociono ,sempre.
Foi muito gratificante nossa ida à Mendoza…só a alegria do reencontro com o primo,valeu.
Êle ficou tão bem que até pretende vir ao Brasil, retribuir nossa visita.
Agradeço por todo carinho e dedicação e espero que nos presenteie muito com suas matérias ,
sempre brilhantes. Beijão de sua avó que te ama e admira, com respeito
Desculpe, só vi agora… Sempre digo, foi o melhor de Mendoza!!!!!!! Conhecer essa historia! Obrigado Débora!
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